Súmula 603 do STJ, editada e cancelada em seis meses.

Ao contrair um empréstimo (mútuo) bancário comum, é usual que as parcelas da dívida sejam debitadas da conta corrente do mutuário, não só nos empréstimos consignados, que já é regulamentado por legislação própria, mas também em operação com recursos livres (o conhecido empréstimo pessoal). Esse desconto direto na conta corrente é consentido, muitas vezes porque o banco oferece taxas de juros mais atrativas para quem opta por essa modalidade de pagamento ou simplesmente porque facilita o dia a dia do próprio mutuário, que não precisa se
preocupar em pagar os boletos mensalmente.

Ocorre que, em fevereiro deste ano, o STJ entendeu por bem editar a súmula 603:

É vedado ao banco mutuante reter, em qualquer extensão, os salários, vencimentos e/ou proventos de correntista para adimplir o mútuo (comum) contraído, ainda que haja cláusula contratual autorizativa, excluído o empréstimo garantido por margem salarial consignável, com desconto em folha de pagamento, que possui regramento legal específico e admite a retenção de percentual.

Com a edição desse verbete, passou-se a considerar abusivo todo e qualquer desconto direto nas contas dos mutuários, ainda que por estes autorizados. Consequentemente o judiciário passou a receber diversas demandas pleiteando a devolução dos valores retidos pelos bancos, além de sucessivas condenações em
danos morais.

TJ-DF – 07076738420178070018 DF 0707673-84.2017.8.07.0018 (TJ-DF)

Ementa: DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DESCONTOS EM CONTACORRENTE DESTINADA AO RECEBIMENTO DE SALÁRIO. LIMITAÇÃO A 30% DOS RENDIMENTOS DO DEVEDOR. PRECEDENTES DA CASA E DO STJ. RECENTE SUMULA 603 DO STJ. MAIOR RIGOR NA PROTEÇÃO DA VERBA SALARIAL. PRINCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. 1. No contrato de depósito em conta bancária predomina a liberdade do depositante na movimentação dos valores. Todavia, quando se verifica que se trata de conta destinada ao recebimento de salário, há muito o Judiciário vem intervindo nos contratos de mútuos para limitar os descontos em observância ao princípio da dignidade da pessoa humana (…).

As consequências da interpretação dessa súmula seriam desastrosas para as operações de crédito bancário, a começar pelas ações judiciais que provocou, passando a dificultar novos empréstimos, por exigências de novas garantias pelos bancos e taxas de juros mais elevadas.

Vejamos, o intuito da edição da súmula 603 era impedir a invasão das contas dos mutuários pelos bancos e a retenção de verbas consideradas alimentares, visando proteger princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e garantindo que os correntistas mantivessem as condições de sustento de suas famílias. Em outras palavras a súmula visava proteger o que nosso ordenamento jurídico já protege.

O artigo 833 do Código de Processo Civil de 2015 prevê as hipóteses que o patrimônio do devedor é impenhorável, e mais especificamente os incisos IV e X:

IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2o;
X – a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos;
§ 2o O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8o, e no art. 529, § 3o.

Ora, se o próprio judiciário é impedido de penhorar tais recursos do devedor, muito menos o banco poderá retê-los como forma de receber seu crédito. Para isso deverá ingressar no judiciário com ação própria e seguir o trâmite legal para reaver seus recursos. A súmula do STJ em discussão tinha a intenção de proteger direito que já era protegido pela legislação pátria.

Ademais, o próprio desconto de parcelas em conta corrente, mesmo dos mutuários que estejam em dia com os pagamentos, já é regulado via resolução do Banco Central do Brasil (resolução Bacen 3.695/2009) que proíbe os descontos caso estes não sejam autorizados pelo correntista.

“O objetivo da Corte é unificar a jurisprudência, não parece hoje que unificamos bem. Seria o caso de voltar atrás. Pela confusão acho que a súmula deve ser revista.” Admitiu o ministro Marco Aurélio Bellizze.

O que se vê é que o STJ, mesmo bem-intencionado, acabou por gerar uma verdadeira desordem nas decisões dos tribunais inferiores, que entenderam que deveriam julgar ilegais qualquer desconto às contas correntes dos mutuários relativos a tais empréstimos.

Certo é que prejuízos foram suportados, tanto por instituições financeiras que pagaram danos morais e devolveram dinheiro a correntistas, quanto por correntistas que, dada a insegurança jurídica experimentada, porventura tiveram negadas suas propostas de crédito, ou ainda que aprovadas, tiveram que arcar com condições piores de taxas e prazos.

Não é incomum vermos o judiciário alterar legislação por meio de súmulas, uma verdadeira invasão da competência do Poder Legislativo. Nesse caso, uma redação infeliz para uma súmula desnecessária, tendo vista sua matéria já estar prevista em lei. Visto a interpretação errônea que estava causando aos tribunais inferiores, o próprio STJ entendeu por bem proceder o seu cancelamento apenas seis meses após editada.

Referências:

1. Migalhas. Cancelada súmula do STJ sobre proibição de banco reter salário para adimplir mútuo comum. 2018. Disponível em <https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI286148,61044-Cancelada+sumula+do+STJ+sobre+proibicao+de+banco+reter+salario+para>. Acesso em 23 de agosto de 2018.

2. Bacen. Resolução Bacen nº 3.695 de 30 de março 2009. Disponível em <https://www.bcb.gov.br/pre/normativos/busca/downloadNormativo.asp?arquivo=/Lists/Normativos/Attachments/47650/Res_3695_v2_L.pdf> Acesso em 24 de agosto de 2018.

3. Brasil. Lei Nº 13.105, de 16 de Março de 2015. Código de Processo Civil.

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